sexta-feira, 17 de outubro de 2008

1939 - A escolha de Leiria


Leiria, Mercado de Santana, em finais dos anos 30

«Na escolha que fiz de Leiria, tempos depois, para abrir consultório de otorrinolaringologia, pesou sobretudo a pouca distância a que ficava de Coimbra. Como em Sendim [Miranda do Corvo], poderia continuar a fazer dela ponto de apoio clínico e respiradoiro literário. Mas não deixou de influir também na decisão a grata lírica da terra, embalada pelo marulho do pinhal do Rei,
situada
Numa planície fresca e deleitosa
A uma rocha íngreme encostada
Donde o castelo a mostra mais fermosa,
habitada pelo génio de Rodrigues Lobo, que assim a cantou, e percorrida pelo vulto esquivo de Eça de Queiroz, que parece apontar ainda a cada esquina.
Desde a remota leitura da Corte na Aldeia e de O Crime do Padre Amaro, que ficara preso ao encanto feminino daquela cidadezinha de ruas de curto fôlego e praças de intimismo familiar, acolhedora, a ressumar história e cultura por todas as pedras e ao mesmo tempo impregnada de rura­lidade. Em nenhuma outra de Portugal era tão indecisa a fronteira entre o urbano e o campestre. As vinhas e os prados entravam por ela dentro numa fusão natural. De qualquer miradoiro que se olhasse, viam-se telhados e copas, calçadas e feno. As veigas do Liz cercavam-na dum lado, e as do Lena do outro. No meio, campanários, chaminés e outeiros granjeados. Daí talvez a circunstância feliz de o bucólico de seiscentos e de o mordaz oitocentista poderem sentir com igual intensidade, a respirar-lhe os ares, a frescura das brisas pastoris e o mormaço das paixões humanas. Do poeta maviosíssimo, como dizia uma inscrição a memorá-lo, pouco rasto havia. Mas do romancista tudo falava ainda. A casa onde morara, o palácio do Terreiro a relem­brar o escândalo de que fora protagonista, a antiga sede da administração do Concelho, asilo do seu tédio de funcionário. Uma semana depois da minha chegada, já com o nome suspenso de uma varanda a oferecer os préstimos, sonâmbulo pela cidade e a cruzar-me com os seus habitantes, tinha a impressão de estar diante de figuras a que ele dera vida e desaproveitara à última hora»

in TORGA, Miguel - A Criação do Mundo, O Quinto Dia. Coimbra: Edição do autor, 1974

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